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Blog O Comentário da Semana por José Pedro Calheiros

29 Janeiro 2010
O escarrador

Numa das minhas viagens a Londres tive oportunidade de visitar uma curiosa colecção de peças de porcelana, desde as milenares chinesas às mais modernas peças de design. Estreitamente ligadas à actividade humana, muitas delas fizeram parte de uma relação próxima com a vivência humana, nomeadamente nos hábitos alimentares e de higiene, havendo também as de utilização terapêutica, científica e decorativa. É claro que chamava a atenção a fabulosa colecção de "vasos de noite" também chamados de penicos. Mas o que me fez realmente sorrir foi a magnífica colecção de escarradores. Pequenos, de bolso, para utilização privada. Médios, de mesa de cabeceira, e até grandes de uso colectivo em espaços públicos. Simples ou profusamente decorados. Estas peças seriam muito utilizadas no tempo em que os "humanos escarravam", bem depois do tempo em que os "animais falavam". Prática absolutamente normal de limpeza das fossas nasais, e que de forma mais polida se diz expectorar (v.t. Expulsar dos brônquios e dos pulmões as substâncias que aí se encontram). Mas deixando de lado as palavras designatórias, passemos à realidade. Os escarradores desapareceram do uso quotidiano e também, curiosamente, o desagradável, inestético, mal-educado e porco hábito de escarrar para o chão. Haverá excepções, mas nada comparado com há umas dezenas de anos atrás, onde até servia para mostrar alguma virilidade, talvez uma tentativa arcaica de marcar território.

Hoje escarra-se menos em público, o que é definitivamente bom, pois as ruas estão menos conspurcadas e menos pessoas ficam enojadas com expectoração alheia. Na sala seguinte da exposição estava uma enorme colecção de cinzeiros. Então percebi como são as coisas. Afinal as pontas de cigarros que grande parte das pessoas atira com extrema à vontade para o chão, pela janela do carro ou de casa, seja no campo ou nas cidades não são mais que a modernização do escarro. Um escarro modernista, normalizado, com design, aparentemente estéril, mas tal como o seu antecessor define os mesmos hábitos, sendo partilhado e ficando remanescente para os restantes cidadãos. A diferença é que o tradicional, de matéria orgânica total, desaparecia por si só em processo simples. O actual fica cá por muito mais tempo. Escarradores ou cinzeiros, a escolha é sua.


Comentários
29 Janeiro 2010 - Fernando Wintermantel
Olá Zé Pedro,
Mais uma vez, estás de parabéns pelas pérolas literárias que magnanimamente distribuis no já lendário "Comentário da Semana". Sobre o último tema abordado, cumpre-me informar que temos em Portugal muitos e bons exemplares dignos de nota. Refiro-me concretamente àqueles produzidos pela Fábrica de Faiança das Caldas da Rainha de Rafael Bordalo Pinheiro. De referir que, há alguns anos atrás vi na Galeria do Casino Estoril uma exposição com peças da autoria de mestre Rafael Bordalo Pinheiro, sendo dignos de nota os escarradores presentes. Figuravam estes a cabeça de um agiota de boca aberta com a inscrição na garganta da taxa de juro cobrada. Não sei porquê, mas lembrei-me agora da taxa de juro praticada actualmente pela Banca. Um abraço.

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